segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Obstáculos 7 - Mentira e Ilusão



Saudações a todos.

Como último texto desta série sobre os obstáculos que encontramos ao caminho da reintegração no dia a dia, devemos falar um pouco de um hábito praticado cotidianamente pela grande maioria das pessoas: a mentira.  Associada à mentira, temos um fenômeno muito frequente entre nós: a ilusão.

A mentira é resultado de uma percepção egoísta e distorcida da realidade, a ideia de que estamos competindo com as outras pessoas por algo limitado, do qual depende nossa felicidade.  Nesse ambiente competitivo, de “guerra”, quaisquer armas são válidas, desde que nos deem alguma “vantagem competitiva”.  E a mentira pode nos dar alguma vantagem – ilusória e temporária, é bom que se diga – e sendo assim é muito comum nos mais diversos meios sociais, em especial nos meios políticos e empresariais, pois nesses meios a competitividade é exacerbada em geral.

A mentira, na realidade, é uma forma mais cômoda de lidarmos com conflitos difíceis que ocorrem em nosso dia a dia.  Se nos deparamos com uma situação em que contar a verdade seria extremamente desconfortável ou constrangedor para nós ou para uma ou mais pessoas à nossa volta, o mais provável é que recorramos à mentira, em alguma de suas diversas formas: omissão total, omissão de detalhes relevantes, alteração de detalhes relevantes, ou simplesmente invenção pura, a forma mais radical.

Mas, em geral, os códigos éticos vigentes condenam veementemente qualquer tipo de mentira ou falsidade, não levando em consideração que este é um hábito muito frequente em todos os níveis de nossa sociedade.  A mentira é muitas vezes um sinal de boa educação, sendo necessária para uma convivência saudável com as pessoas de nosso convívio.

Vamos a um caso em que a mentira é vista como algo natural: você encontra uma pessoa que está com a aparência horrível, fora dos padrões – muito pálida, com manchas no rosto, com uma ferida bem visível ou algo assim.  Pelas regras sociais de convivência civilizada, nunca devemos reagir da forma mais natural e verdadeira: “mas como você está esquisito!”, e sim tratá-lo normalmente, como se não estivéssemos percebendo aquela situação grotesca à nossa frente.  Somente se a pessoa tocar no assunto, você tem “licença” para tocar na questão potencialmente constrangedora.

E porque essas “mentiras sociais” são tão bem aceitas na sociedade, enquanto outras são veementemente condenadas?  Porque existe uma regra de convivência muito sábia que diz: “evite ferir as pessoas sem necessidade”.  Como as pessoas, muitas vezes, não assumem seus defeitos ou fraquezas, pode ser muito desagradável falar dessas questões a elas.

Assim, podemos adaptar o comando “não mentir” para “não mentir, mas também não dizer o que as pessoas não suportariam ouvir”.  Desse raciocínio vem o conceito de “sincericídio”, que é colocar em grave risco um relacionamento de amor ou amizade por contar uma verdade muito inconveniente.  Dependendo da situação, se o relacionamento for muito importante e a questão envolvida pouco relevante, pode ser realmente mais sensato mentir ou omitir, em vez de cometer um “sincericídio” – mas essa questão é controversa.

No caso das “mentiras sociais”, é muito frequente que as pessoas envolvidas nas situações não estejam prontas para encarar a realidade, e assim deve-se ter algum tato antes de soltar um “como você está horrível”.  Assim, podemos dizer que há as “mentiras sociais”, em geral inofensivas, ou até úteis para a convivência, e as “mentiras essenciais”, em que realmente você deixa de contar a alguém algo muito relevante, que poderia beneficiá-lo, ou não prejudicá-lo, algumas vezes em seu próprio proveito.


Ambos os tipos de mentira têm origem na mentira fundamental – a que praticamos conosco.  Mais adequado chamar essa “automentira” de ilusão.  A ilusão é uma visão distorcida da realidade, que pode ser ocasionada por diversos fatores.  Podemos nos iludir quando:
- Alguém nos convence a acreditar em uma mentira – nesse caso, sempre há pelo menos um dos fatores a seguir associado – nunca acreditamos em alguém se algo dentro de nós não nos leva a acreditar.
- Chegam até nós percepções distorcidas da realidade, vindas de nossos sentidos físicos.
- As percepções são corretas, mas não as aceitamos, bloqueando-as, normalmente por questões emocionais.
- Percebemos a realidade, mas nos convencemos que é mais conveniente uma “outra versão” da mesma, mudando os fatos a nosso favor e insistindo nessa versão, até que um dia passamos a acreditar nela.
- Percebemos a realidade, porém nossos sentidos físicos são insuficientes para percebemos a realidade essencial, que somente seria percebida pela intuição.

A partir do descrito acima, pode-se dizer que todos, de alguma forma, se iludem, e assim todos estão sujeitos e mentir, de uma forma ou de outra, para os outros.  Vale a pena refletir bem sobre as fontes de ilusão, para que se evite um “moralismo” excessivo, uma defesa intransigente da verdade a qualquer custo, considerando a mentira inadmissível em qualquer contexto.  Como já descrevi, existem mentiras que são até recomendáveis em certas circunstâncias, e existem mentiras que são “inevitáveis”, pelas autoilusões desenvolvidas ao longo da vida.  Sendo assim, muito cuidado ao “condenar” de antemão alguém que mentiu para você.

Devo agora aproveitar o ensejo e falar que o julgamento de outras pessoas é sempre muito complexo.  Normalmente, a atitude mais sábia é simplesmente não julgar, pela imensa dificuldade em se saber quais as circunstâncias do meio ambiente e da própria personalidade da pessoa que a levaram a fazer algum ato condenável. 

Nesse caso, vale pensar na pergunta: quem seria incapaz de cometer um crime?  Será que existe alguém que jamais mataria alguém, em nenhuma circunstância?  Normalmente, o mais sábio é utilizar a faculdade do julgamento em nós mesmos, antes de a usarmos nos outros. 

E mesmo quando a usamos em nós mesmos, devemos ser moderados, pois há circunstâncias que nós mesmos ignoramos, ou ilusões difíceis de evitar, que nos levam a atos “condenáveis”.  Assim, de acordo com a visão mística, o julgamento deve ser usado sim, mas de forma moderada, analisando-se circunstâncias concretas, e não generalizando indiscriminadamente.

Em outras palavras, deve-se evitar “rotular” os outros, chamando alguém de “ladrão” ou “assassino”, por exemplo, só porque ele cometeu algum deslize – aquilo pode ser algo específico daquele momento e não um “defeito incurável” em sua personalidade, e, mesmo que seja algo reiterado, a pessoa sempre terá a chance de mudar.  Devemos lembrar que todos estamos aqui neste mundo para nos reintegrarmos à divindade, em um processo que envolve erros e acertos, e todos teremos chance de evoluir.  Para isso, o perdão é uma ferramenta poderosa, muito mais do que o julgamento indiscriminado.

Sendo assim, o mentiroso deve ser compreendido em um contexto maior, assim como qualquer um que sucumbe a algum dos obstáculos já citados.  Afinal, se não pudéssemos sucumbir e fraquejar, qual seria o mérito de ser virtuoso?  O livre arbítrio existe, dentre outros motivos, para que tenhamos condição de errar e aprender com os erros – o erro é um elemento fundamental em nossa caminhada.

Feita essa digressão sobre como devemos ser compreensivos e tolerantes com as pessoas que mentem, devemos agora defender radicalmente a integridade, a honestidade interior, por um motivo muito simples: a integridade é uma poderosa ferramenta que nos auxilia em nossa caminhada.  Além disso, há outro motivo muito importante: a integridade fortalece a confiança e a união entre as pessoas, que assim se tornam fortes aliadas na caminhada coletiva da reintegração – e todos ganham com isso, em um círculo virtuoso, em um processo “ganha-ganha”. 

Assim, a mensagem é a seguinte: seja honesto por que é melhor para você e para todos, no longo prazo.  Seja honesto porque assim você estará economizado muito tempo e energia em sua caminhada, direcionando seus esforços ao que realmente importa, sem ilusões ou truques, e ajudando todos a fazerem o mesmo.  Seja honesto porque assim você estará cultivando verdadeiras amizades, e terá avanços cada vez mais expressivos em sua caminhada.

Nesse caso, vale uma frase muito sábia: “se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem”.  Essa frase capta bem a ideia essencial: ser honesto é sempre mais “lucrativo”, no longo prazo.  E cabe ressaltar esse “longo prazo”, pois a mentira pode triunfar por um tempo, mas no longo prazo a verdade sempre prevalece, afinal, como diz outra frase famosa: “você pode enganar alguns por algum tempo, mas não pode enganar a todos por todo o tempo”.

Em sentido oposto, a mentira e a hipocrisia contribuem para enfraquecer o tecido social, corroendo a confiança mínima que deve haver em qualquer relacionamento humano.  O mentiroso contumaz vai criando uma teia de ilusões e histórias falsas à sua volta, que muitas vezes exigem uma dedicação extrema para não “cair em contradição”, para não falhar, na busca incessante de um “crime perfeito” que simplesmente não existe, pois o crime é imperfeito em essência. 

A psicologia moderna já realizou estudos que mostram que o ato de mentir consome muito mais energia que dizer a verdade, pois há um gasto emocional imenso em inventar “desculpas”, em manter “segredos”, em saber com quem compartilhar, em quem confiar, em um ambiente de imensa desconfiança.  Esse processo, quando prolongado, é muito desgastante, com tensão crescente, até que em algum momento o “plano” dá errado.  Não é à toa que as organizações criminosas, por mais poderosas e tradicionais que sejam, em algum momento se enfraquecem, na maior parte das vezes em disputas internas, não sendo sustentáveis no longo prazo.

Na realidade, um dos principais obstáculos à caminhada mística do homem é a ilusão, e a mentira tem o efeito perverso de alimentar as ilusões, de fortalecê-las, o que muitas vezes impede alguém de ter a mínima consciência de qual seja o caminho para a felicidade, abraçando causas nada sublimes, que o levarão invariavelmente ao sofrimento.  Talvez uma das maiores tragédias da história da humanidade seja a epidemia de ideologias ilusórias, que se alastra com facilidade em muitos lugares do mundo até hoje.

Poderia citar vários exemplos dessas “ideologias” verdadeiramente criminosas, que arrastaram tantos povos para a guerra e ocasionaram verdadeiros genocídios, em nome de uma “causa superior” ilusória.  Quase todas têm em comum uma visão “totalitária” de mundo, em que há uma imensa repressão do livre-arbítrio individual, aos pensamentos, palavras e ações individuais, a serviço de uma “causa maior”, supostamente coletiva, voltada ao “bem comum”.  Infelizmente, a ideia de Deus tem sido utilizada, com frequência, para justificar essas ilusões, em uma forma perversa de ilusão – vestir o lobo em pele de cordeiro para que as pessoas sejam iludidas com mais facilidade.

E como evitar a ilusão?  Essa é a pergunta mais relevante.  Como evitar que um sujeito inteligente e carismático te iluda e te envolva em uma teia de ideias mirabolantes, que necessariamente levarão todos os envolvidos, incluindo o líder egoísta, à infelicidade?  Sendo mais objetivo, como evitar ser iludido?

Essa é uma pergunta difícil de responder, pelas questões já levantadas neste texto – há várias formas de se iludir, e normalmente elas estão associadas a percepções distorcidas, emoções dissonantes, razões enganosas ou falta de conexão espiritual com Deus, fonte da sabedoria intuitiva.  

Sendo assim, deve-se buscar aprimorar as percepções e estar atento a detalhes relevantes – usando a intuição para saber quais são os detalhes relevantes em cada situação.  Além disso, deve-se buscar o equilíbrio emocional e o desenvolvimento racional harmonioso.  Um meio para se conseguir tudo isso é ter como hábito de seu dia a dia as práticas místicas essenciais.

E quais são essas práticas?  Basicamente, oração e meditação.  Para um místico, essas atividades são parte de seu dia a dia, tal como alimentação ou respiração, e acabam se tornando uma prática familiar e muito benéfica, em todos os sentidos. 

Mas eu não vou afirmar aqui que, se orarmos e meditarmos regularmente, será impossível que alguém nos engane.  Ora, muitas pessoas já demonstraram seu incrível talento para a manipulação alheia, para a mentira contumaz, para a hipocrisia e a dissimulação.  Em certos casos, o melhor é torcer para que nenhum desses “gênios da mentira” cruze seu caminho.  Assim, a única forma de se eliminar o risco de ser enganado é não se relacionando com ninguém, algo praticamente impossível e nada recomendável.

Posso afirmar então que é praticamente certo que, por mais que você esteja atento e harmonizado, um dia você seja enganado, iludido, passado para trás, e aí como reagir?  Aqueles que estão devidamente harmonizados deverão perdoar, de verdade, o autor dessa mentira “essencial”, e entender que quem levará a pior no longo prazo é ele e não você, que é a vítima.  E então haverá uma reação construtiva, tomando precauções para que tal fato não se repita, mas não se fechando ao convívio social – estamos aqui para correr riscos mesmo, isso faz parte da dinâmica da vida.  E vida que segue, continuamos buscando a felicidade.

Só devo acrescentar que aqueles que estão devidamente harmonizados somente serão enganados quando isso for realmente necessário para sua evolução, ou seja, quando for necessária uma mudança de atitudes – às vezes somos meio negligentes em certos aspectos de nossa vida, e essas desilusões servem para que tenhamos mais cuidado em certas situações.  E dificilmente repetirão os mesmos erros, pela sua capacidade de autocrítica e sua flexibilidade em mudar sua conduta e sua visão de mundo, sempre que necessário.

Em suma, a mentira e a ilusão são companheiras nossas, estão presentes em diversos aspectos de nossa vida, e muitas delas são divulgadas com frequências pelos modernos meios de comunicação, em verdadeiras “epidemias de ilusão”.  Mas existem maneiras de se preveni-las e também de mitigar seus efeitos, quando elas forem inevitáveis – basta orar, meditar e se harmonizar com o Amor Divino.

Acredito que um dos principais motivos de eu estar escrevendo essa série de textos é para que os leitores pensem um pouco sobre os obstáculos aqui descritos, e formem uma opinião consciente, menos influenciada pelas ilusões dominantes em nosso mundo moderno.  Quem sabe isso possa ajudar você a avançar em seu próprio caminho?  Convido-o a fazer esse esforço, essa tentativa, pois só você pode fazê-lo, os caminhos são individuais, e na realidade existem múltiplos caminhos para cada pessoa, basta usar o livre-arbítrio, conscientemente, sem ilusões. 

Assim, fica o apelo final dessa série de textos sobre como superar os obstáculos mais comuns em nossa caminhada: livre-se das ilusões!  Critique, pense sobre as ideias que são apresentadas a você, e daí escolha as que forem mais adequadas à sua felicidade.  Encare a verdade, a sua verdade, que certamente será harmoniosa com as verdades de todo o resto do mundo.  Afinal, somos todos um, não é mesmo?

Saudações fraternas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário