terça-feira, 14 de outubro de 2014

Ação Social Mística



Saudações a todos,

Vou falar agora de um tema não muito frequente em textos místicos: a atuação social de um místico.  Isso porque, normalmente, as pessoas associam o misticismo a um processo interno, individual, e realmente é para cada pessoa individualmente que o discurso místico é dirigido, e a caminhada mística para a Reintegração Divina é uma caminhada individual, de autoconhecimento.

Mas, como já dito no post “Visão Social Mística”, devemos considerar o aspecto social do ser humano também, por ser um aspecto fundamental na formação de sua personalidade.  Além disso, pelo princípio da unidade, somos todos um, e a Reintegração Divina só se realizará plenamente quando toda a humanidade estiver unida, em harmonia total com Deus.

Devo frisar que, para a visão mística, a interação social é resultado das influências individuais dos membros do grupo, em especial de seus líderes, mas não somente deles, pois estes sempre devem ser legitimados pelos seus liderados.  Em termos místicos, a liderança que conta é a de fato, ou seja, o líder é aquele que efetivamente conta com a obediência, respeito e colaboração dos demais membros do grupo.

Conforme a visão mística, cada membro do grupo tem poder suficiente para influir de forma relevante nos rumos e nas linhas de ação do grupo.  Um ótimo exemplo dessa relevância vem da parábola do “sal da terra”, em que Jesus usa uma imagem simples para mostrar que, assim como uma pitada de sal pode alterar completamente o gosto de um grande pedaço de carne, um grupo pequeno e organizado de pessoas (ou mesmo uma única pessoa) pode influir sensivelmente nas atitudes de um grupo muito maior.

Exemplos não faltam de pessoas empreendedoras, que, com seu talento e sua disposição, fundaram grandes estruturas – empresas, organizações humanitárias, nações – catalisando esforços em torno de um objetivo comum.  Alguns exemplos relevantes: Martinho Lutero, Napoleão, Gandhi, Hitler, Martin Luther King, Maomé, etc.  Listei diversos líderes ao acaso, para demonstrar que, independentemente do mérito das ideias por eles defendidas, é inegável o poder que um líder pode ter sobre um grupo.

Para que uma pessoa tenha esse poder, é necessário que esta reúna uma série de qualidades, e além disso que tenha oportunidade de demonstrar essas qualidades aos demais – em outras palavras, deve “estar no lugar certo na hora certa”, ou ainda, “representar o que todos (ou a maioria) estavam precisando naquele momento”.

Mas, mesmo para os que não estão nesse minúsculo grupo de “grandes líderes”, a visão mística diz que sempre se pode ter influência relevante sobre a sociedade, sem exceções.  Na realidade, se conseguirmos influenciar uma única pessoa, de forma a alterar para melhor o rumo de usa vida, e auxiliá-la na caminhada da Reintegração Divina, isso já tem mérito para a visão mística, e pode ser o suficiente para demonstrar a relevância de sua influência.  Não é a quantidade de pessoas envolvidas que conta e sim a qualidade, a capacidade de transformar profundamente a vida de outras pessoas para melhor.

Essa influência nem precisa ser direta ou imediata.  Por exemplo, se um místico deixa alguns escritos com suas ideias e, depois de sua morte, alguém lê esses escritos e, sob tal inspiração, resolve fundar um grupo místico relevante, que vai transformar a vida de inúmeras pessoas, isso é altamente meritório para aquele místico já morto, embora o mesmo nem tivesse a consciência, em vida, de que iria ter um papel relevante na sociedade.  Devo dizer que tal fato já ocorreu algumas vezes na história das ordens e sociedades místicas, havendo inclusive vários mitos a esse respeito.

Assim, conforme a visão mística, todos podem e devem influenciar socialmente os demais, preferencialmente no rumo da Reintegração Divina – mas, mesmo que essa influência seja nefasta, dissonante, contrária aos preceitos do Amor Divino, mesmo assim essa pessoa estará auxiliando indiretamente o processo, demonstrando onde pode chegar a insensatez humana – diversos genocídios e massacres são a prova disso.

Como exemplo relevante, o estrago causado pela bomba atômica no Japão, em 1945, além de encerrar de vez a 2ª guerra mundial, o que foi positivo em si, deu lugar a diversos tratados e organizações com o objetivo expresso de evitar a todo custo que tal insensatez se repita.  Outro exemplo relevante seria a aversão da sociedade alemã em geral (com algumas exceções minoritárias) a qualquer forma de neonazismo, surgida após toda a carnificina resultante do movimento nazista no passado.

Em suma, ao fim das contas, não há outra direção possível, e, de uma forma ou de outra, o Amor Divino vai indicar o caminho à sociedade para a Reintegração Divina.  Só que algumas formas são muito dolorosas, e seria muito sábio se pudéssemos evitá-las – para que tantos mortos, tantas famílias dilaceradas, tanto sofrimento?  Aí reside a grande missão social de um místico – indicar a outras pessoas as formas menos dolorosas, mais sábias, para que a humanidade alcance a reintegração Divina.

Tal objetivo pode ser alcançado de diversas formas, e é interessante que todo místico busque a mais adequada a seus talentos e possibilidades.  Vou listar algumas:
- Participação política direta – o místico pode se candidatar a algum cargo eletivo e, se eleito, ter condição de ativamente influenciar os rumos da sociedade.  Também pode ocupar um cargo dirigente importante no governo ou setor privado, exercendo daí uma influência construtiva sobre a sociedade em geral.  Nesse caso, a ação ocorre principalmente no campo material, das percepções (embora possa ocorrer em outros campos também).
- Formulação teórica – o místico pode descrever formas ideais de sociedade e indicar caminhos para se chegar a essas “sociedades utópicas”, divulgando suas ideias por meio de escritos e/ou palestras – a Internet veio facilitar imensamente essa tarefa.  Nesse caso, a ação é quase que exclusivamente no campo da razão.
- Influência na vizinhança – o místico pode buscar ser um formador de opinião em sua vizinhança, ou seja, junto a pessoas de seu grupo – pode ser grupo de amigos, colegas do trabalho e outros.  Essa influência pode vir simplesmente do seu exemplo de integridade.  Nesse caso, a ação é principalmente no campo das relações humanas, em especial no das emoções – carisma pessoal.

Além dessas três vertentes, há ainda uma quarta forma de influenciar a sociedade, que é mais mística, espiritual.  Trata-se de exercitar a visualização criativa.  Por essa vertente, o místico pode visualizar formas mais justas e fraternas de convivência social, e, por meio da visualização, ajudar para que essas formas se tornem realidade.

A principal visualização criativa nesse sentido é a da paz mundial, algo que é unanimemente defendido por místicos das mais diversas correntes.  Como já destacado no post “Guerra e Paz”, os conflitos violentos, por mais que deixem marcas terríveis em milhares de famílias, sempre terão algum aspecto positivo, podendo ajudar na reintegração divina da humanidade.  Porém, há diversos caminhos alternativos á violência, caminhos muito mais sábios. 

Em suma, as guerras não são ruins em si (nada é ruim em si), mas não são indispensáveis à evolução espiritual – na realidade, quanto mais evoluída a humanidade ficar, quanto mais elevadas forem as frequências dos pensamentos, palavras e ações humanas, menos guerras haverá, até que chegará um momento em que elas serão totalmente abandonadas.

Sendo assim, é muito válida a visualização da paz mundial.  Posso citar diversas opções de visualização que podem ser feitas com esse intuito:
- Visualizar o planeta Terra envolto com uma aura luminosa (da cor preferida, ou simplesmente transparente), sentindo uma paz interior e passando pensamentos de paz e harmonia a todos.
- Visualizar duas ou mais pessoas se abraçando, apertando as mãos, conversando amistosamente, se entendendo, em harmonia – pode-se ver no meio dessas pessoas, interagindo, sentindo-se feliz e acolhido entre amigos.
- Visualizar duas pessoas ou grupos, antes rivais, fazendo as pazes – podem ser também dois líderes de nações inimigas (judeus e palestinos, por exemplo) – conversando animadamente e apertando-se as mãos, abraçando-se, reconciliando.
- Visualizar um campo de batalha ou uma situação de conflito, e, então, visualizar tudo banhado em uma luz poderosa e então as pessoas param de brigar, se acalmam, e a harmonia passa a reinar.

Essas são somente algumas sugestões de visualização, pode-se usar a criatividade à vontade.  Deve-se procurar praticá-la sempre que possível, pois sempre há conflitos de diversos tipos que podem e devem ser harmonizados.

Naturalmente, as formas de agir acima descritas não são excludentes.  Pode-se realizar várias delas simultaneamente, ou sucessivamente, de forma que uma potencialize os efeitos da outra.  Em suma, um místico aplicado tende a se tornar voluntariamente um “soldado da paz”, tentando ativamente colaborar com a paz global e com a construção de uma sociedade mais justa e harmoniosa, de todas as formas a seu alcance.

Uma questão relevante é que, às vezes, essas diversas vertentes de ação podem parecer conflitantes.  Por exemplo, quando um místico vive em uma comunidade muito carente, sujeita a lideranças tirânicas, que buscam dominar a todos pelo medo e são extremamente injustas, nesse caso a melhor atitude para construir uma sociedade mais justa pode ser fomentando a revolta popular, que pode desencadear um conflito, uma guerra mesmo.

O principal exemplo histórico dessa atitude mais “belicosa” de um místico foi Maomé, nascido em uma sociedade extremamente desigual e injusta, com líderes tribais tirânicos, que teve que pegar em armas para defender seus ideais – e teve vários sucessores que mantiveram essa atitude, criando o que se conhece hoje como o Islã, uma imensa comunidade unida por diversos traços religiosos e culturais, embora com inúmeras diferenças relevantes entre as diversas comunidades.  Com todas as críticas que possam existir, até hoje, contra o Islã, deve-se reconhecer o valor místico da liderança e da mensagem de Maomé, e como seu jeito de ser foi um facilitador para a propagação de sua palavra.

Mas tal atitude é uma excepcionalidade, sendo raramente utilizada por um místico.  De forma geral, os místicos são realmente pacíficos, sabendo que tudo que ocorre é bom em si, contribuindo de alguma forma, mais cedo ou mais tarde, para o bem comum, a Reintegração Divina, o objetivo mais importante de toda a humanidade.  Além disso, o místico sabe também que, pelo princípio da unidade, todos temos a mesma essência, e que, em um nível mais sutil, o que fazemos aos outros estamos fazendo a nós mesmos.  A partir dessas premissas básicas, não há porque ter qualquer resistência ou atitude violenta, pois o místico confia na “Providência Divina”, ou seja, no final feliz que inevitavelmente virá.

Vários exemplos ocorrem dessa “mansidão” básica de um místico, e talvez os melhores sejam de grandes místicos orientais, que desenvolvem uma indiferença quase total a quaisquer eventos externos, em atitude de extrema meditação e conexão com seu eu interior.  Claro que esses são exemplos extremos, acredito que a maioria dos místicos não seja tão imperturbável assim.

Talvez a melhor regra de conduta para um místico seja “harmonizar sua vontade com Deus” e, a partir daí, “fazer sempre o que tiver vontade”.  Muitas vezes, a vontade harmonizada será a de ficar manso, sem resistência e deixando as coisas se ajeitarem, com paciência e sabedoria.  Mas em outras ocasiões, o místico poderá ter vontade de se posicionar, de agir efetivamente para mitigar alguma injustiça flagrante, ou algum ato de violência que esteja ocorrendo a sua frente.  E, então, por que não agir?  Acredito que, em casos de graves injustiças, a omissão não é a atitude mais sábia, às vezes é necessário tentar fazer algo, na medida do possível, já que, nesses casos, “esperar tudo se ajeitar” pode ser totalmente inútil.  Claro que tudo depende da situação, do momento.




Vou agora tratar de uma situação muito comum nas grandes cidades brasileiras, que esconde um dilema prosaico, mas fundamental no convívio social: você está caminhando na rua ou parado em um sinal de trânsito e vem um mendigo pedir algo.  O que fazer?  Como um místico deve se comportar?  Essa questão é bem mais complexa do que possa parecer, pois há um conflito de duas visões antagônicas: a caritativa, que defende auxílio incondicional, sempre que solicitado; e a da dignidade social, que defende que dar esmola é um mecanismo de humilhação e de perpetuamento de uma condição degradante. 

A visão caritativa se apoia no valor da fraternidade, da solidariedade humana, valor sempre exaltado por quaisquer correntes místicas ou religiosas.  Várias organizações místicas e religiosas têm por missão a prática do auxílio gratuito aos necessitados, realizando grandes esforços para mitigar as carências e atender às necessidades básicas de parte expressiva de nossa população, que não tem acesso às mínimas condições de alimentação, saúde, educação, conforto, etc.  Essas organizações estão lá para ajudar quem precisa, invocando o princípio da unidade, que diz que todos somos um, e quando ajudamos ao próximo estamos ajudando a nós mesmos.

Não há como se opor à fraternidade ou à solidariedade, que são valores muito elevados, mas devemos lembrar que vivemos em uma sociedade com desigualdades radicais, e existe outro princípio muito relevante a ser defendido, que é o da igualdade.  Por esse princípio, todo ser humano é igual em direitos e deveres, por ter a mesma dignidade, a mesma essência divina, e então deve ser tratado de forma igualitária

Sendo assim, pela visão da dignidade social do indivíduo, todos têm direito ao atendimento a suas necessidades básicas, mas a partir daí tudo deve ser conquistado por mérito próprio, pois o trabalho recompensado dignifica a pessoa, dotando-a de poder de decisão sobre sua vida, seu destino, e fazendo-a ter plenas condições de exercer seu sagrado livre arbítrio.  Todo aquele que depende de outros para ver suas necessidades básicas atendidas terá sua liberdade cerceada, de uma forma ou de outra.

Essa visão dá mais valor ao princípio da causa e efeito, sustentando que, ao dar de graça algo a alguém, as consequências naturais serão: o reforço da ideia de “sou dependente” em quem recebe o apoio, e o reforço da ideia de “sou generoso” em quem dá.  Tais ideias, quando repetidas e distorcidas, podem levar a uma percepção de que o outro é diferente, sendo que o benfeitor tende a se considerar “melhor” do que o pedinte, e vice-versa.

Para evitar isso, o auxílio deve, sempre que possível, vir com uma contrapartida, deve “custar” algo ao beneficiado, nem que seja seu tempo ou sua atenção, ou então o auxílio deve buscar despertar no beneficiado sua dignidade, por meio da educação, da conscientização de seu valor, para que ele, depois de um tempo, possa se recuperar a caminhar com suas próprias pernas.  Várias instituições de caridade seguem essa linha de “assistência ativa”, oferecendo educação básica, qualificação profissional, estimulando que as pessoas auxiliadas tenham seus próprios negócios, etc.

Quando um mendigo está parado na calçada, simplesmente esperando que o dinheirinho para sua refeição caia em sua mão, um auxílio poderá aplacar sua fome, que fatalmente voltará no fim do dia ou no dia seguinte, e ele continuará naquela calçada a vida toda, por absoluta necessidade.  Nesse sentido, dar uma esmola é um auxílio bem pouco efetivo.  Se ele passar o dia inteiro ali e não conseguir nenhuma esmola, ele precisará se movimentar, e terá maior possibilidade de sair daquela situação.  Assim, o melhor auxílio em alguns casos é não ajudar.

Mas há situações diversas, pode ser que aquele pedinte não seja um mendigo habitual, pode ser que ele efetivamente precise de ajuda naquele momento (por ex., para comprar uma passagem para voltar para sua cidade), e o melhor a fazer nesse caso é, caritativamente, ajudá-lo.  Pode ser que ele seja uma pessoa passando por uma fase difícil, que só precisa de ajuda por poucos dias ou meses, para depois voltar á sua vida normal, ou ainda uma pessoa com uma fragilidade insuperável (algum tipo de deficiência física grave), que o torne cronicamente dependente. 

Por outro lado, existem os mendigos que não são necessitados nem acomodados, são mesmo espertos, e percebem que dá muito menos trabalho explorar a misericórdia alheia, podendo tirar uma quantia suficiente para seu sustento diário sem grandes esforços de sua parte.  Nesse caso, é muito comum lançar mão de truques que aumentem a compaixão alheia: feridas horríveis, gemidos e expressões de dor, cadeiras de rodas, bebê no colo, tudo para aumentar a “arrecadação”.  Alguns deles montam “redes” de pedintes para maximizar suas “receitas”, explorando outros mendigos mais frágeis.

Finalmente, há ainda a questão das crianças pequenas pedintes, que obviamente são frágeis e não conseguem prover seu sustento.  Esse caso é bem complexo, mas pode-se ponderar que a criança deveria sempre ser amparada e cuidada, recebendo a devida educação e tendo um lar adequado.  Se isso não ocorrer, poderemos ter um adulto criado de forma totalmente inadequada, com sérios problemas comportamentais, tendendo à marginalidade social e criminal. 

Assim, deve-se ponderar qual a mensagem que estamos passando à criança ao dar algo a ela, só porque ela pediu e é indefesa.  Que educação queremos passar às nossas crianças?  A da fragilidade e da humilhação?  Deve-se ponderar ainda que muito frequentemente há um adulto ou adolescente perto dessas crianças, acompanhando e monitorando, em uma prática criminosa de exploração infantil – dar esmola à criança, em geral, ajuda a fortalecer esse esquema perverso.  Mas sempre há exceções...  Há casos de crianças efetivamente desamparadas, por total omissão de instituições, públicas e privadas, que deveriam dar a devida proteção social.

Assim, percebe-se a complexidade da questão, e, para piorar, no meio da rua não temos tempo nem condições de saber em que caso se enquadra aquele necessitado à sua frente.  Ele só precisa de uma resposta imediata.  Como o místico deve agir então?

A melhor resposta que posso dar é: com amor, com a intuição, com o que seu coração lhe disser naquele momento.  Nesse caso, a razão não ajuda, deve-se sentir o clima, perceber intuitivamente qual a intenção da pessoa, qual a atitude mais adequada e então ir em frente, com confiança.  Dar sem esperar reconhecimento, dar pelo prazer de dar, dar porque é o mais certo a se fazer, sem se preocupar depois com o que aquele pedinte fez com sua esmola.  Ou então dizer não, gentilmente, e seguir seu caminho, com confiança, sem se sentir culpado ou desumano, sem pensar se deveria ter ajudado ou não.  Deixe para Deus dispor da melhor forma, só cabendo a você ouvir a voz de sua intuição, a cada momento.
 
Essas visões antagônicas – solidariedade x dignidade social ou fraternidade x igualdade – estão presentes em diversas questões sociais, e estão refletidas, nas ciências econômicas e sociais, na dualidade socialismo x liberalismo, ou esquerda x direita.  De um lado, a ideia de que deve-se garantir a distribuição o mais equânime possível dos recursos materiais da sociedade, sendo que os que têm melhor condição devem sempre ajudar os que são mais carentes, evitando discrepâncias sociais extremas; e de outro lado a ideia de que todos devem ter tratamento igualitário, devendo-se garantir oportunidades mínimas de educação e qualificação a todos e então cada um, conforme seu mérito, realiza suas conquistas. 
De um lado, o princípio da unidade é o preponderante, e, de outro, o princípio da causa e efeito impera.  Qual o mais importante?  Não existe princípio “mais importante”, ambos são fundamentais em nosso universo, e convivem harmoniosamente nos planos sutis.  Na realidade, deve haver equilíbrio entre esses princípios, entre essas concepções aparentemente antagônicas, necessitando flexibilidade para se reconhecer os aspectos mais relevantes de cada situação.  E não há fórmula mágica para tal equilíbrio, ele tem que ser avaliado a cada momento a cada situação.

Posso dizer que cada sociedade, a cada momento, deve fazer suas escolhas, e estas são dinâmicas, sendo em geral compostas de movimentos cíclicos, pendulares, em que ora se privilegia a melhor distribuição de recursos, ora se privilegia a garantia de dignidade mínima e o reconhecimento do mérito individual.  Por isso, as sociedades mais desenvolvidas normalmente são providas de sistemas políticos que preveem alternância de poder – como por exemplo, os sistemas democráticos “maduros” da Europa Ocidental, dos EUA e do Japão.

E o que a visão mística tem a dizer sobre essas diversas correntes e variedades ideológicas e políticas?  Que todas são válidas em seu contexto, e que devem sempre ser submetidas ao teste da realidade.  Como as pessoas ainda não estão harmonizadas ou integradas com Deus, seus sistemas políticos, econômicos e sociais também serão imperfeitos, e sendo assim mudanças periódicas de rumo e reavaliações são muito importantes.

Uma imagem interessante para ilustrar esse “caminho” das sociedades humanas seria imaginar as grandes ideias dominantes (fraternidade x igualdade) como duas colunas laterais ao final de um caminho largo, e as sociedades estariam se movendo nesse caminho, em direção às colunas.  A trajetória se assemelharia a um ziguezague, a cada momento pendendo para uma das colunas, até que, quando há um desvio excessivo do caminho em direção a uma das colunas, há mudança de rumo para a outra coluna, e assim sucessivamente.  Essas mudanças são cíclicas e permitem que, ao final, se passe pelo meio das colunas, em uma situação de equilíbrio.

Assim, embora possa parecer que a sociedade fica indo e voltando no mesmo lugar, na realidade sempre há um avanço, e diversos elementos harmonizadores de cada visão vão sendo incorporados aos poucos, até que se chegará, ao futuro, em uma situação de equilíbrio, em que igualdade e fraternidade conviverão da forma mais construtiva possível, gerando prosperidade acessível a todos.

Para concluir, gostaria somente de abordar mais uma questão polêmica a respeito da ação social mística: pode um místico ser um político?  Em outras palavras, podem as práticas místicas e políticas serem conciliáveis? 

Esse questionamento é bem procedente, uma vez que existem diversos eventos na história humana mostrando que, normalmente, quando se junta liderança política e ideologias místicas, com muita frequência há degeneração das liberdades básicas dos cidadãos, e o regime político se torna uma tirania.  Poderia citar inúmeros exemplos. 

Além disso, as práticas políticas são sempre pragmáticas, privilegiando os fins, os objetivos comuns, sendo mais flexíveis em relação a princípios básicos, enquanto as práticas místicas privilegiam os princípios, a harmonia interior, independentemente de resultados aparentes.  A princípio, parecem abordagens antagônicas e inconciliáveis.

Mas devemos pensar que uma das funções fundamentais da atividade política é justamente conciliar correntes antagônicas.  Qual o segredo disso?  Negociação.  Busca-se, no processo de consenso, extrair o que ambos os oponentes têm em comum – e todos temos algo fundamental em comum, que é a essência divina – e a partir daí vão se construindo soluções para os conflitos, envolvendo pequenas concessões mútuas, boas intenções, discursos conciliadores, gestos fraternais, até que se chega a um acordo.  Essa atividade é uma arte, e exige que os envolvidos não tenham posição radical, estejam dispostos a negociar, ou seja, a abrir mão de coisas razoavelmente importantes em nome de um bem maior, muito mais relevante.

Assim, é possível para um místico ser um ótimo político, desde que ele não seja um fundamentalista, ou seja, alguém que não aceita nem admite opiniões divergentes, por se considerar mais “iluminado” que os outros.  Humildade e tolerância são fundamentais.  Acredito que um místico dedicado, que consiga se harmonizar realmente com Deus, tenderá a ter essa visão mais tolerante e humilde do processo político, e então poderá contribuir, na medida do possível, para o embate construtivo de ideias e para os consensos práticos necessários ao processo político em geral.

Para os que acham que política e boas intenções são inconciliáveis – infelizmente, os relatos dos jornais nos confirmam essa impressão diariamente – devo dizer que sempre haverá os bem intencionados, em questões relevantes para a sociedade, pois sem eles o sistema simplesmente não funciona.  Sem uma dose mínima de Amor Divino, nada sobrevive, as forças de repulsão prevalecem, e as estruturas se autodestroem – quantas vezes isso não ocorreu na história da humanidade?  Quantos povos, sociedades e mesmo impérios tombaram diante de sua própria desordem interna?  Se não houvesse os bem-intencionados, os que desejam servir à comunidade e construir um mundo melhor, a sociedade não conseguiria sobreviver.

Ocorre que na maioria das vezes os erros e desvios chamam muito mais a atenção.  O que a imprensa prefere divulgar, a vida de um trabalhador honesto em sua rotina heroica de esforço disciplinado, ou a vida de um político desonesto, que vive desviando dinheiro público?  Devemos ter consciência que, para cada desonesto neste mundo, há muitos outros honestos e íntegros, fazendo silenciosamente seu trabalho e dando sustentação para que todos possam ter seu mínimo conforto (inclusive os desonestos).  Sem julgar ninguém, qual dos dois está mais próximo do Amor Divino?  Qual deles vai ter mais harmonia e felicidade em sua vida, em geral?  Falo da felicidade mais profunda, e não da que é ostentada para visão externa, tantas vezes ilusória.

Assim, um místico dedicado pode ser um bom político sim, pode exercer sua atividade sem trair seus ideais mais essenciais, mas tendo flexibilidade necessária para realizar escolhas difíceis, mas necessárias para se alcançar objetivos mas nobres.

Concluindo, a visão mística considera que todos os sistemas políticos e econômicos representam respostas concretas e práticas a questões muito relevantes na vida social, e todas são degraus necessários a uma caminhada que inevitavelmente chegará á sociedade utópica, ideal, harmonizada com Deus. 

O místico, individualmente, pode ter muita influência nesse processo, por meio de seu trabalho místico particular, pelas interações inspiradoras com outras pessoas, e também por meio do efetivo auxílio a quem precisa de ajuda, seja ela material, emocional ou espiritual.  Além disso, o místico pode atuar como agente ativo de transformação social, por meio da politica, se assim for mais adequado.

Que todos tenhamos muita inspiração para seguir nessa caminhada com muita harmonia, paz, luz, vida e amor!

Saudações fraternas.

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